Cotas raciais nas universidades: os argumentos são conhecidos.
Para o pensamento progressista, as cotas são uma forma de corrigir injustiças passadas, abrindo as portas das melhores universidades a candidatos negros, ou hispânicos, ou nativos-americanos etc.
Para temperamentos mais conservadores, as cotas são uma nova forma de racismo, ainda que invertido, ao reduzir a singular individualidade de cada um à mera pigmentação da pele.
E são, claro, um atentado às mais elementares noções de mérito.
Os argumentos são conhecidos, repito. Mas o que dizer quando duas bíblias do progressismo americano --o "New York Times" e a revista "Atlantic"-- publicam matérias altamente críticas sobre as políticas afirmativas no país?
Aconteceu. Nenhuma delas repete argumentos gastos porque a discussão deixou de ser ideológica. Passou a ser empírica: estarão as políticas afirmativas a produzir efeitos contrários aos pretendidos?
Ambas respondem que sim e dão nome ao descalabro: "mismatch". Ou, traduzindo o conceito, alunos impreparados que entram em universidades de elite através de preferências raciais têm desempenhos acadêmicos sofríveis.
E esse "mismatch" não se limita aos anos de formação. Ele acompanha os indivíduos para o resto das suas vidas profissionais.
O problema é particularmente pronunciado nas ciências, nas engenharias e nas matemáticas, o que não admira: o conhecimento nas "ciências exatas", relembra o "New York Times", é um conhecimento contínuo, onde é necessária uma forte preparação de base para haver progressos contínuos também.
Sem essa preparação, chegar a universidades de elite apenas pela cor da pele é uma espécie de desembarque pedagógico nas praias da Normandia.
A "Atlantic" quantifica essa carnificina: os alunos negros continuam a preferir mais cursos de ciências ou de engenharia do que os brancos; mas o "mismatch" faz com que a desistência entre negros seja o dobro da verificada entre os brancos.
O mesmo acontece depois da universidade: em direito, por exemplo, os alunos negros são reprovados no exame de acesso à profissão quatro vez mais do que os alunos brancos; o "mismatch" explica metade desses fracassos. O que fazer perante os números aterradores das políticas afirmativas?
Escondê-los tem sido uma opção, o que significa arruinar silenciosamente a vida de milhares de pessoas para que as consciências progressistas possam dormir com as suas vaidades intactas.
Outra opção, sugerida sem um pingo de vergonha pelo "New York Times", é "convidar" as instituições de elite a serem um pouco menos de elite. No fundo, "convidar" Harvard a não ser Harvard --uma forma de corrupção intelectual e um caminho para o atraso científico do país.
Mas existe uma terceira via: defender a velha ideia de que competências médias devem frequentar universidades médias.
A "Atlantic", aliás, revela uma curiosa experiência: em 1998, a prestigiada UCLA deixou de usar critérios raciais nas suas admissões. Resultado imediato: queda acentuada de alunos negros (menos 50%) e hispânicos (menos 25%). Escândalo e protestos.
Porém, o mais espantoso é que, nos anos seguintes à abolição dos critérios raciais e, apesar da queda, o número total de negros e hispânicos graduados pela UCLA era semelhante ao número de negros e hispânicos que terminaram os seus cursos antes da abolição. Por quê?
Razões várias. Cito duas. Primeiro, porque a UCLA acabou por atrair os melhores alunos negros e hispânicos que assim puderam frequentar uma universidade sem o "estigma" das políticas afirmativas.
E, mais importante ainda, porque aumentou o número de alunos negros e hispânicos que iniciaram a sua formação em universidades mais modestas -e só depois se transferiram para a UCLA.
Sim, ideologicamente, sou contra discriminações positivas (ou negativas) porque sou incapaz de reduzir qualquer ser humano a um "grupo" ou uma "raça". E não creio que seja função da universidade prosseguir agendas igualitárias. Apenas científicas.
Mas existem evidências empíricas que reforçam as ideológicas: a igualdade de oportunidades deve ser uma igualdade de base na formação de qualquer indivíduo.
Pretender corrigir no fim o que vem torto desde o início é destruir vidas adultas com ilusões politicamente corretas.
João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em Ciência Política. É colunista do "Correio
da Manhã", o maior diário português. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista"
(Record).
Escreve às terças na versão impressa de "Ilustrada" e a cada duas semanas, às segundas, no site.
Este texto foi publicado no Folha de S.Paulo sob o título: Desembarques na Normandia.
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