O professor Celso Lafer é uma pessoa suave. Quando um funcionário da imigração dos EUA pediu que ele tirasse o sapato para entrar no país depois dos ataques do 11 de Setembro, ele candidamente se submeteu.
Petistas de plantão viram na atitude do então chanceler de FHC uma afronta à soberania nacional e usaram o episódio furiosamente para destratar Lafer e seu governo.
Anos depois, o professor Celso dá o troco com a suavidade de um artigo na página três desta Folha apontando claramente que o Brasil cometeu ilegalidade ao patrocinar a incorporação venezuelana ao Mercosul, à revelia de um de seus membros, o Paraguai, suspenso pouco antes por um incidente político interno que ficou pequeno diante das consequências regionais.
O que de fato aconteceu na reunião de cúpula do Mercosul segue um mistério que sintomaticamente ninguém do Itamaraty ou do Planalto se dispôs a comentar. O único que falou foi o assessor presidencial Marco Aurélio Garcia, o que não é um bom sinal.
Para compor esse enigma internacional, a estranha e repentina renúncia de Samuel Pinheiro Guimarães, ex-número dois do Itamaraty, ao principal posto do bloco, o de Alto Representante do Mercosul, na véspera da cúpula. Outra história para os restos a contar.
O pouco que sabemos, sabemos dos uruguaios. Foram eles que tiraram Dilma do armário ao dizer que a presidente brasileira pediu uma conversa particular com os colegas Cristina Kirchner (Argentina) e José Mujica (Uruguai). Na conversa, Dilma, com Cristina de dupla, enquadrou o velho tupamaro uruguaio.
Só sobrou a Mujica reclamar depois da entrada ilegal da Venezuela no Mercosul e lembrar que até o dia 31 de julho a medida pode ser suspensa, uma prerrogativa que revela o gesto envergonhado e a sensação de malfeito.
O Mercosul surgiu como um bloco econômico para incrementar as trocas comerciais da região e a partir daí comandar a integração regional. O bloco estagnou numa união aduaneira porosa, cheia de exceções tarifárias para ajudar os argentinos.
Os dois países pequenos do bloco, Uruguai e Paraguai, sempre viveram oprimidos entre os grandalhões perigosos Argentina e Brasil. Dilma e Cristina formam seu pior pesadelo, abrindo as portas para Chávez e o bolivarianismo e forçando os dois pequenos a olharem ainda mais para outras alianças fora do Mercosul.
O Brasil vai melhor que Argentina e Venezuela porque é diferente de Argentina e Venezuela. Mas o incidente paraguaio seguido pelo golpe brasileiro no Mercosul mostra que sob Dilma o Brasil parece alinhado e até a reboque de Caracas e Buenos Aires.
No mesmo dia em que o ministro Guido Mantega discutiu publicamente com o presidente do Itaú, o governo de Cristina Kirchner anuciava política de forçar os bancos argentinos a emprestarem mais às empresas.
Quanto mais parecidos estivermos com Kirchner e Chávez, pior para o Brasil.
Chávez é um bom amigo dos petistas, não resta dúvida. O marqueteiro do partido e da presidente, João Santana, coordena a campanha presidencial do caudilho venezuelano, que enfrenta um câncer misterioso e cambaleia triunfalmente para um terceiro mandato, ficando no poder (e no Mercosul) até 2019.
Ter Chávez dividindo o poder do Mercosul por tanto tempo e usando a legitimidade que ali resta para se promover, atacar EUA e Europa e defender China e Irã não parece alvissareiro. Como não é a aproximação do bloco com Pequim em detrimento dos EUA.
Teremos saudades dos tempos em que o Mercosul era só um fracasso regional. Ele está se tornando um problema regional.
Sérgio Malbergier é jornalista. Foi editor dos cadernos "Dinheiro" (2004-2010) e "Mundo" (2000-2004), correspondente em Londres (1994) e enviado especial da Folha a países como Iraque, Israel e Venezuela, entre outros. Dirigiu dois curta-metragens, "A Árvore" (1986) e "Carô no Inferno" (1987). Escreve às quintas no site da Folha.
Se tiverem estômago, vejam a página e ouçam o clipe! É engraçado, quando você liga o NOME a PESSOA...
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