O texto foi escrito por um tricolor (Claudio Lampert) em Fevereiro de 2004, depois de assistir uma virada épica para 4 x 3, após estar perdendo para o Fluminense.
Se você não é Flamengo, não vai entender . . . Mas vai saber o que todos sentem quando enfrentam o time de maior torcida deste mundo!
"Foi dose. Nós fomos até lá. Estávamos lá dentro, naquele calor infernal.
Ontem o meu filho Daniel começou a descobrir que existem duas coisas nesse mundo. Uma, é o futebol. A outra, é o Fla-Flu.
Descobriu que esse adversário odiado é mais do que um simples time de futebol. É um time de futebol seguido por uma horda de loucos fanáticos, que se agrupam e fazem gol. Entram em campo e fazem gol. Fazem o segundo, o do empate e o da virada.
Numa única tacada ele descobriu o medo e o respeito que se deve ter dessa instituição e desse jogo, clássico de apelido garboso, colorido interminável e lotado de almas fanáticas.
É coisa para gente grande.
É jogo para quem tem o coração tingido dessas cores. De grená, verde, preto, vermelho e do branco que acompanha esse arco-íris.
O ar que se respira no estádio é diferente, a atmosfera é diferente. Tudo muda quando você chega na Praça da Bandeira ou cruza a Zona da Leopoldina em direção àquela maçaroca de concreto. Um aglomerado velho e obsoleto, sem conforto ou segurança. Mas que vicia. Nos deixa dependentes dele e de seus mistérios e dogmas. É. O Maracanã tem dogmas. E não são poucos. São sérios o suficiente para fazerem de seus jogos eternos eventos com ares de seita. Com rituais próprios, cânticos específicos, liturgia. E consagração.
Lá a gente aprende desde cedo que o jogo só termina quando acaba (it is not over until it is over, dizia o astro do baseball, Yogi Berra). E eu andava meio esquecido disso.
Logo na chegada, quando descíamos o Oduvaldo Cozzi a pé, com o calor escorchante se despregando do asfalto, eu senti a atmosfera oblíqua. Olhei pelo viaduto abaixo, me desviando de cambistas e flanelas, e enxerguei o capitão Belini erguendo a taça.
Sempre cercado pelo burburinho da esperança. A meia hora do pontapé inicial, cada um nós se aproxima do portão com esperança saltando pelos poros.
O menino de sete anos beijava o seu cordão sagrado, com a camisinha tricolor dependurada num barbante preto sebento. Olhávamos um tumulto nas bilheterias e a Raça Rubro Negra chegando pelo lado da Radial Oeste. Gente por todos cantos. O gesto dos punhos cerrados e cruzados ao alto e o prenúncio de arrastão. Esse é o grande contraste dessa minha vida de pequeno burguês. Pequeno burguês até na escolha do time de coração. Time que provoca engarrafamento no Rebouças, quando enche o Mario Filho, e fila nos restaurantes da Zona Sul depois dos seus jogos. É só nesse dia de Fla-Flu que eu enxergo o contraste que existe entre as patricinhas sem sutiã da torcida tricolor e a tropa de marginais guerreiros da Raça Rubro Negra e da Torcida Jovem.
Um abismo social.
Do ambiente de clubinho direto para a vida-como-ela-é. Um pânico de mais de trinta anos. A língua incha dentro da boca e o medo me surrupia a nesga de esperança. A baixa-estima da elite quando se perde em meio ao nada.
Ir a esse clássico é estar perdido no meio do nada. Subir a rampa nos Fla-Flus é sempre um constrangimento. Um exercício de mau gosto. Mudar de lado por ser menos numeroso. Por ter sido invadido em priscas eras, quando tomaram nosso lugar à força e nos mandaram para o lado direito das cabines de rádio. Explicar para um menino o porquê de naquele dia – só naquele dia, em mais nenhum outro – ter que virar para a esquerda, no sentido horário, é sempre uma pequena revolta.
Ter que ver o jogo sentando naquelas faixas de concreto que abrigam bundas vascaínas é falta de higiene. Um desgosto que me acompanha desde criança, quando fui rampa acima ver o meu primeiro Fla-Flu, em 1977 (1×1).
Ontem, os deuses desse jogo se alojaram naquelas arquibancadas desde cedo. Pintaram e bordaram com as duas nações. Com 19 minutos do segundo tempo eu estava trepado na divisória entre as cadeiras amarelas e as brancas (o módulo central, que mistura as duas torcidas), fazendo o sinal de acabou com os braços, chamando um cara do outro lado de corno e entoando o famoso “ela, ela, ela, silêncio na favela”.
Era o terceiro gol do gigante Rodolfo.
Doze minutos depois, a favela vinha abaixo com seus gritos de guerra. E eu descia a rampa em ritmo acelerado, com um nó na garganta, cumprimentava o grande Belini e entrava no primeiro táxi que vi pela frente.
O menino pedia para ficar. Se lembrava de um jogo com o Santos em que saímos 1 minuto antes e o time cavou um empate fantasma aos 48 do segundo tempo. Eu olhava fixo para a Avenida Maracanã de dentro daquele Santana velho. O taxista insistia em dizer que achava o estádio muito perigoso e que não gostava de futebol. Mas pedia detalhes do jogo e mantinha diálogo com a frustração escancarada do meu pequeno Daniel.
Eu nunca tive medo dessa trupe. Nunca mesmo. Mas que é diferente, é.
Os outros sempre foram fregueses. Sempre foram engolidos. Mas esses não. Peguei os piores momentos da história desse jogo, quando tínhamos que ir a campo ver Artur Antunes, Leovegildo, Leandro, Tita & Cia. Chegamos a enfrentar isso aí com times absolutamente medíocres, de zezés, galaxes e robertinhos.
E eu nunca tive medo.
Mas sempre existiu uma coisa que me deixa perambulando entre o mistério e o pânico.
Aliás, não é “coisa” coisa nenhuma.
É metafísica.
É o Sobrenatural de que tratava Nélson.
É perturbante.
É aquela massa uniforme pulando do outro lado. 23 minutos, 1×3, e eles não paravam de pular; ninguém saía do seu aperto; ninguém ia embora.
Eles nunca vão embora.
Eles nunca arredam o pé.
Eles não se sentam, não param de gritar.
Eles não sossegam.
Me perseguem, me sufocam, me habitam os pesadelos e me causam pânico.
Quando eu olho para o outro lado é isso que eu sinto. Eles acreditam mais do que os outros. Mais do que eu e todos os outros juntos.
E disso, meus caros, eu me borro de medo.
Eles jogam com 12.
E jogar com 12 deveria ser proibido.
Deixar Felipe andando de um lado para o outro, desfilando o seu repertório de categoria e classe, foi uma imprudência. E o jogo foi um jogo para a história.
Dentro do táxi, uma frase de uma criança de sete anos ficou estalada no meu tímpano: “papai, eu tenho nojo deles”.
Eu também tenho.
É só o que posso dizer hoje.
Mas se não fossem eles essa mágica não existiria."
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